Os Povos de Inhacurutun
Para antes dos eventos colonizadores no Brasil, sabe-se bem que o país todo era tomado por nações indígenas, porém, com a chegada dos portugueses em terras tupiniquins pelo nordeste e sudeste brasileiro, a atual região do extremo Sul do país se manteve, por um tempo a mais, quase intacta ( não fossem a presença dos espanhóis pela Patagônia ), e como tal, algumas nações prosperaram por alguns anos a mais como os charruas, os minuanos e o grande tronco guarani, que incluía a etnia mbya.
O Inhacurutun era um cerro alto onde ali se estabeleciam famílias, guerreiros e diferentes líderes que mantinham seus sistemas de troca, coleta e caça e em bem comum, uma característica que soa quase natural aos guaranis. Mesmo as etnias tendo suas diferenças, mantinham padrões de vida respeitosos e de poucos conflitos, o que os faziam prosperar na região, hoje localizada no noroeste dos pampas gaúchos brasileiros.
A partir do século XVII, dá-se início a primeira etapa das Missões, ou Reduções, jesuíticas na região, impreendidas pela Companhia de Jesus, fundada em 1534, e que serviria como um órgão que iria catequizar os nativos, os " gentis da terra ". Talvez não muito amigáveis como pintam as histórias sobre os Carijós, rapidamente extintos, os Guaranis num geral viam com muita desconfiança o avanço dessas missões e suas incursões forçadas sobre tribos indígenas de variadas etnias. Segundo o Tratado de Tordesilhas ( 1494 ), essas terras seriam de domínio espanhol, e por isso uma certa facilidade dos padres jesuítas se locomoverem e avançarem com força não só religiosa, mas também bélica.
Em 1626 surge a redução de São Nicolau, e em 1627, surge Candelária do Caaçapamini, em 1628 surgem mais duas missões, a de Assunção do Ijuí e a de Todos os Santos do Caaró. Pela primeira vez, o Inhacurutun treme.
A CONVERSÃO FORÇADA E A SUBMISSÃO ASSUMIDA
Desde as fundações das missões, célebres nomes jesuítas surgem como Roque González, João de Castilhos e Afonso Rodriques. Estes três nomes se tornariam mártires da fé cristã, porém, mesmo que com certos relatos contendo autoritarismo em demasia para com os índios, sua conversão era tradicionalmente forçada e a demonização das práticas indígenas como as religiosas, medicinais e até questões íntimas como a poligamia eram condenas com veemência pelos jesuítas.
Em meio à todo esse caos, um influente líder acompanhava tudo à espreita, um nome que teria peso em todas as nações indígenas do noroeste do atual Rio Grande do Sul, Brasil, seguindo pelo Rio Ijuí e como tal, teria uma responsabilidade enorme nas costas, via seus irmãos de armas e sangue sendo submetidos a trabalhos braçais repetitivos em lavouras, via seus guerreiros se tornando " homens brancos " e defendendo não mais à terra e à vida, mas sim às missões e aos jesuítas. Esse cacique, conhecedor das técnicas medicinais e também da pajelança ancestral, visto como um forte feiticeiro entre os indígenas, não suportou ver a sua fé sendo alvo de ataques e banalização, não suportou ver mulheres se submetendo a atos que iam contra seus dogmas, homens guerreiros perdendo seu feitio à caça, à luta e à honra, este homem era Nheçu.
NHEÇU, O AVISO ANCESTRAL E O GRITO PELA LIBERDADE
O cacique Nheçu era um nome influente, como já citado, e desde o início das reduções jesuítas, não via com bons olhos o que acontecia com seu povo, e como numa reação imediata, Nheçu tentou converter os seus à fé guarani, dizia que a nova fé não lhes servia, e via a escravidão e a subjugação em seu povo.
E quanto mais o cacique-pajé reluta contra o avanço dos costumes europeus, mais ele vê cruzes e torres crescerem em suas terras guaranis e mais a fúria toma o seu corpo. Nheçu resolve recorrer à uma assembléia, convoca vários caciques da região e ascende uma fogueira no topo do Inhacurutun, esta fogueira não se apagou, como reza a lenda, durante 5 dias, e foi o aviso necessário para que os caciques atendessem ao clamor do grande líder mbya-guarani. Segundo contam algumas crônicas nativistas, a fogueira teve favor do tempo, que se manteve propício e sem intempéries e no dia do encontro, diz-se que em meio às labaredas uma lança sobe de encontro a Lua Cheia, era o aviso que Nheçu necessitava ouvir de seus ancestrais e sem demora, mandou organizar milícias para com seus companheiros caciques e seu plano logo entraria em vigência.
Nheçu acreditava que o domínio só iria cessar se os indígenas invadissem os aldeamentos e as missões, queimassem as cruzes, as igrejas e as imagens e matassem os sacerdotes que trouxeram a fé distante que arruinaria com a vida das nações indígenas, e assim se deu. Em 15 de novembro de 1628, foram mortos os padres Roque Gonzalez e Afonso Rodrigues na redução de Caaró, e em 17 de novembro do mesmo ano, é morto o padre João de Castilhos. Conta-se que os índios ainda invadiram mais duas reduções, a de Candelária, visando o padre Pedro Romero que consegue fugir à cavalo e ainda atacam a redução de São Nicolau, onde os padres já haviam fugido, mas nessa, talvez ocorre a maior derrota para Nheçu.
Na redução de São Nicolau, os próprios indígenas aldeados passaram a defender as missões, e na batalha eram índios enfrentando índios, bárbaros contra gentis, cristãos contra pagãos, e Nheçu se vê derrotado por conta da pólvora estar ao lado dos índios cristianizados e aculturados, quanto mais seu exército cai, mais vulnerável ele ficava até que acaba sendo capturado.
Seu fim soa como incerto, podendo atribuir-lhe a condição de prisioneiro até sua morte ou de seu suicídio nas águas do Uruguai. Mesmo após seu fim, os indígenas continuaram sofrendo nas mãos das milícias jesuítas, que passariam agora a caçar índios rivais e não convertidos, e além disso, as missões seguiriam sendo atacadas pelos bandeirantes, nos quais ansiavam por mão de obra escrava e indígena, e bons caçadores de índios que eram, o faziam com destreza, aumentando ainda mais o sangue das terras das missões e aumentando o teor dos conflitos. Nheçu passaria a ser descrito como um homem vil, pagão, bruxo, um ser sem alma e indigno de ser visto como homem, e a historiografia por muito tempo o descreveu assim até os dias de hoje.
DE VILÃO A SÍMBOLO DE LUTA E RESISTÊNCIA
Recentemente a história envolta de Nheçu vem sendo revisionada ao passo de se preocupar com a visão dos dominados sobre o caso, e não somente a dos jesuítas, que tornaram os padres autoritários mártires e demonizaram os indígenas, os reduzindo a " verdugos ". Nheçu é um nome de peso na cultura do Rio Grande do Sul, na afirmação dos povos guaranis, na afirmação dos descendentes das missões e boa parte de sua história se encontra, talvez por ironia, na cidade que leva o nome de um dos mártires, Roque Gonzalez no Estado do Rio Grande do Sul, no Brasil.
A procura pela afirmação da identidade, pela afirmação da cultura e sua consequente alusão ao povo gaúcho e para além brasileiro, passa por essas história de luta pela terra, luta pelos costumes e luta pela liberdade de ser, simplesmente, o que sempre se foi desde tempos imemoriais.
Assim como Ajuricaba, Tibiriçá, Cunhambebe, Sepé Ti Arajú e outros, Nheçu nos ajuda a entender a noção do que é ser brasileiro, ajuda a tapar velhos buracos cheios de dúvidas e incongruências sobre nossas origens e reafirma o nosso caráter guerreiro do dia-a-dia. O brasileiro é resultado de toda a luta e sangue nessas terras, empregada por braços de várias cores e no suor de gente humilde e batalhadora.
Viva a " Ñezú Retã "!
Por: Vítor Matheus Gonçalves
Referências e indicações
https://www.youtube.com/watch?v=LtcCVjyDF0s - Guanaco - Pajada de Nheçu e Tyyaraju
http://www.riototal.com.br/coojornal/eneasathanazio117.htm
http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getBlog&uf=1&local=1&template=3948.dwt§ion=Blogs&post=244905&blog=706&coldir=1&topo=3951.dwt
https://jornaldasmissoes.com.br/colunistas/mario-simon/nhecu-o-mito-anunciado/
https://www.portaldasmissoes.com.br/site/view/id/1791/lenda-cerro-do-inhacurutum.html
Créditos das imagens contidos em duas gravuras.
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