POVOS INDÍGENAS DO BRASIL - O SANGUE QUE AINDA REGA A TERRA


Sabemos que nós brasileiros temos uma incrível dificuldade em relação à nossa identidade. Uns se consideram ocidentais irmãos ou filhos dos europeus, outros preferem assumir a latinidade do brasileiro em comunhão aos nossos vizinhos americanos que em tempos de outrora configuravam o Império Inca, e ainda há quem prefira simplificar ou reduzir toda a complexidade da etnicidade brasileira numa bi-etnicidade ( brancos x pretos ) que cá entre nós, sabemos que não representa o Brasil, quiçá as Américas. Quando falamos de povos indígenas, geralmente nos vêm à cabeça o apagão que o europeu botou na continuidade dos povos indígenas, e não é uma mentira, sabemos das atrocidades que ocorreram em solo americano decorrente do processo colonial.
É fundamental para nosso entendimento que os povos indígenas compuseram e são parte importante de nossa cultura, de nossa língua, de nosso modo de ver e representar o mundo e ainda em traços mais específicos variando de região para região do Brasil. Até o século XIV, o Brasil contava com, aproximadamente, 5 milhões a 6 milhões de indígenas, uma população dividida em dois grandes troncos que eram: Macro-Jê E Tupi-Guarani. E ainda podemos citar: Aruak, Karib e mais ao Sul os Charruas.
Esses troncos abrigavam ainda uma gama de subdivisões de tribos e aí podemos citar algumas como Tupinambás, Tamoios, Tapajós, Carijós, Minuanos, Xavantes, Goitacás, Kaigang, Caiapós, Aimorés, Pataxós, Tupiniquins, Macuxis, Tukanos, Guajajaras, e assim por diante, ou seja, a variedade de etnias era gigantesca, porém, muitos dividiam línguas semelhantes e costumes semelhantes.
Os índios também tinham uma intensa atividade agrícola em comunhão com a natureza, traço forte cultural dos povos nativos, além disso, haviam muitas guerras entre os povos, guerras inclusive consideradas sacras, envolvendo a honra dos guerreiros, a sacralização de seus corpos ( antropofagia ) e a redenção perante os parentes e tribos inimigas, ocorrendo a manutenção da honra e da " guerra santa ". Outro traço que chamaria a atenção é a de que em algumas tribos a sociedade tinha traços matriarcais mais fortes, enquanto em outras o patriarcado era predominante, muitas envolvendo a poligamia, além, claro, do coletivismo e a preocupação com o todo ao invés do indivíduo muito forte.
Os índios brasileiros, ao contrário de seus parentes andinos, não tinham a necessidade de erguer grandes construções, impérios ou constituir reinados, o Brasil era, literalmente, um paraíso para todos que aqui viviam: água abundante, carne, frutas, ervas, terra livre.

OS INDÍGENAS E OS EUROPEUS

No século XV, quando há os primeiros contatos com os portugueses, graças a carta de Pero Vaz, sabemos que houveram hostilidades, porém houveram amizades. A ambiguidade já estava presente desde os primeiros contatos, enquanto os Goitacás, Tupinambás e Aimorés ofereciam a guerra e a resistência aos europeus, os Carijós eram os " gentis da terra " por excelência, bondosos e amigáveis aos visitantes de longe, o que não impediu, claro, dos colonos os escravizarem.
Muito se pinta, e inclusive em Portugal, de que realmente havia uma cumplicidade e um clima amistoso entre índios e europeus, o que é uma mentira maior que o Everest, vejam bem, os índios por si só cultuavam a guerra, eram povos aguerridos, honrosos, que respeitavam a terra e mantinham garantidas as relações do ser humano com a natureza onde vivia, quando confrontam uma cultura diferente, totalmente expansionista, violenta, extrativista e colonialista, sentem-se afrontados, e com razão, afinal como soa a lenda em torno de um célebre guarani, Sepé Ti Arajú: " - Essa terra tem dono! ".
Mas também não podemos dizer que os índios não usufruíram de certa aproximação com os portugueses, além da prática do escambo, portugueses se alinhavam à algumas tribos e assim conseguiam desbravar os territórios, se proteger de ataques de outras tribos e em troca cediam algumas bonificações aos aliados. Essa prática ficaria bem comum quando franceses também adentram solo brasileiro, alimentando a rivalidade indígena e incitando a guerra, as etnias iam se armando e guarnecendo os interesses distintos de nacionalidades inimigas europeias em solo brasileiro.

ESCRAVIDÃO INDÍGENA

Não é desconhecimento de todos que os indígenas também foram escravizados, e de uma maneira sutil e mal-caráter, onde nem eles mesmos sabiam do que estava acontecendo de fato. Quando se dão conta, já é tarde demais, mesmo que muitas revoltas passem a eclodir e invasões em sesmarias fossem comuns em retaliações.
A mão-de-obra vermelha é logo descartada, mas não deixa de ser usual ou cobiça por parte, não só dos lusos, mas posteriormente aos luso-brasileiros como é o caso dos Bandeirantes que caçavam os indígenas quase que por prazer ( e ainda levavam os filhos oriundos de estupros junto às bandeiras, os educando como brancos e os mantendo longes de suas raízes, logo, passavam a caçar seus iguais quando atingiam a maioridade ).
A escravidão indígena é relativamente curta em comparação à escravidão africana, mas não por isso não gerou marcas profundas nas relações dos indígenas com o europeu, à essa altura totalmente violenta e na base do interesse e acordos de paz ou morte.

ANTROPOFAGIA

A antropofagia era traço comum não só aos índios brasileiros, mas como a quase todos os 100 milhões ( aproximadamente ) de ameríndios/pré-colombianos das Américas. Basicamente se trata num ritual que, no caso dos brasileiros, envolvia a guerra com o objetivo de capturar guerreiros rivais ( alguns se ofereciam aos inimigos para garantir a paz entre os povos ) onde os vencidos serviriam de um belo banquete aos vencedores.
Porém, não estamos falando aqui de um simples " churrasco humano ", há toda uma base moral, ética e religiosa indígena em torno desse ato. Cada tribo havia um ritual único, mesmo que muito parecido entre si. Os guerreiros capturados eram aprisionados, mas ainda assim tratados como verdadeiros caciques, com direito às melhores comidas, aos melhores cuidados, à mulheres e chás alucinógenos, viviam com vestes ornamentadas com muitas penas coloridas e eram quase " nobres ", porém, viviam assim por um curto período até que chegasse a lua de sua morte. Nisso, todo esse tratamento cai por terra, o prisioneiro é hostilizado pelas mulheres e é obrigado a fugir, os Tupinambás faziam muito disso, onde simulavam uma caça, muito parecido com o costume Asteca, onde enfim, capturavam o prisioneiro sem chances novamente e aí o sacralizavam com um golpe na cabeça por um instrumento chamado de: ibirapema, tacapema ou tangapema. Daí, o sujeito era limpado tal qual um boi é, cada parte de seu corpo era específica conforme sexo e idade dos índios, além de sua atuação, os guerreiros costumavam comer as pernas e os braços, acreditando adquirir a força daquele guerreiro sacralizado, enquanto que outras partes eram designadas às mulheres, afim de trazer vitalidade e até fertilidade, aos idosos e crianças ficavam vísceras e partes sexuais, além de o sangue também servir de alimento aos bebês.
Os Tupinambás ficaram conhecidos mundialmente por tais atos depois que o alemão Hans Staden foi capturado e conheceu de perto um importante cacique: Cunhambebe, este que teve intensas conversas com o alemão e que se orgulhava de ter comido mais de 50 europeus, um verdadeiro mártir das guerras indígenas contra os brancos.
Num conhecido trecho do livro de Hans Staden, ' Duas Viagens ao Brasil ', de 1557, Cunhambebe oferece um pedaço de coxa humana ao alemão, e Hans o questiona: "Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?" , Cunhambebe o responde até com certo sarcasmo: " Sou um jaguar, está gostoso! ".

DE 5 MILHÕES, A POUCO MAIS DE 800.000

Com tantos choques entre as civilizações, guerras e principalmente as doenças que surgiam decorrente das relações com o homem branco, os indígenas foram sucumbindo pouco a pouco e morrendo aos montes, não só no Brasil, mas nas Américas.
No decorrer do tempo houveram ilustres e importantes figuras para a história indígena como os já citados Sepé Ti Arajú, guarani convertido que lutou contra as duas coroas nas famosas Guerras Guaraníticas no Sul do Brasil no século XVII, o próprio Cunhambebe, apreciador de carne europeia, Ajuricaba, importante líder indígena que resistiu bravamente às imposições portuguesas e seu deslocamento em meio o Amazonas, formando uma verdadeira guerrilha contra os portugueses, congregando várias tribos vizinhas e cercando o posto de Manaus, mesmo depois de seu povo sucumbir e ser exterminado, Ajuricaba se suicidou ao invés de se tornar escravo em Belém nas mãos dos europeus, Felipe Camarão, que foi um importante líder potiguar que atuou na Batalha dos Guararapes, em 1630, educado por jesuítas, já era ambientado à língua portuguesa, ajudou na expulsão dos holandeses do Brasil, se tornando Capitão-Mor Potiguar, além de ganhar uma série de soldos, brasão de armas e título de dom pelo império. Atuou desde a Paraíba ao RN, dentre tantos outros nomes importantes de resistência ou bravura, hoje de nada valem.
Episódios como as Missões, as Bandeiras, as Guerras Guaraníticas e tantas revoltas indígenas são entendidos como mera casualidade ou naturalidade na história, sem o apego, sem o orgulho, sem o sentimento de identificação o que soa como triste fim para a história de um povo que até hoje sangra e luta por suas terras, que hoje se vê obrigado a fazer praticamente guerrilhas no Maranhão para manter suas reservas, que ainda morre na mão de pistoleiros, grileiros e madeireiros, e que ainda tem que aguentar racismo igualmente por parte de qualquer brasileiro ignorante.
E ainda hoje, século XXI, mesmo depois de séculos de usurpação, muitas tribos indígenas tem que lidar com o avanço do COVID-19 e mais descaso por parte das autoridades.
Reconheçamos nossas raízes, valorizemos nossas origens. O nosso sangue verte guarani, tupi, nossa pele carrega esse traço de luta. O retrato da luta popular, como se mostraria séculos depois em tantas revoltas populares pelo Brasil. Essa é nossa essência, de luta, de honra, de suor.

" Essa terra tem dono!" - Sepé Ti Arajú.


Gravura representando uma batalha em meio as Guerras Guaraníticas no RS ( 1753-1756 )


Foto mostrando o grupo " Guardiões da Floreta ", tirada em 2019, nas terras Araribóias, no Maranhão. Fotografia: Karla Mendes


Por: Vítor Matheus Gonçalves

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